Advaita. Autoimagem. O observador e a coisa observada

Nós temos, aqui, procurado mostrar para você como se torna possível essa Libertação do sofrimento. A pergunta é: “Como me livrar do sofrimento?” Ou: “Como se livrar do sofrimento?”

Primeiro, antes de tudo, precisamos compreender esse elemento em nós que se vê em sofrimento e que sustenta, naturalmente, essa autocompaixão. Quando você se vê só, abandonado, rejeitado, perde alguma coisa ou alguém, quando algo acontece e você se vê sozinho, sem saber o que fazer, esse estado, psicológico e físico, chamado sofrimento, lhe atinge.

Qual será a verdade do sofrimento presente? Por que cultivamos essa dor? Sim, nós cultivamos essa dor, porque estamos carregados dessa coisa chamada “autocompaixão”, essa pena de si mesmo, sentir dó de si mesmo. Olhar para si mesmo como alguém que está sendo vítima da vida, da existência. Então, a dor e o sofrimento estão presentes em razão dessa autocompaixão.

Será que há uma forma nova de nos aproximarmos daquilo que somos nesse momento, quando somos ‘golpeados” por essa dor? Quando você perde um ente querido, ou quando alguém foge, vai embora ou lhe rejeita, será possível olhar para si mesmo sem essa autocomiseração, sem essa autocompaixão, tomando ciência dessa dor presente e percebendo o significado dela?

Haveria alguma dor se não houvesse uma vinculação de uma imagem psicologicamente apegada àquela dada situação que lhe faz sofrer? Haveria alguma dor, algum sofrimento se não houvesse esse pensamento que você tem nesse momento sobre aquela situação, como um pensamento de rejeição, de resistência, de luta? Vamos tomar ciência disso aqui.

O pensamento presente em nós sobre o que está acontecendo, ou sobre o que aconteceu, nos coloca numa posição de resistência a esse incidente, a essa ocorrência, a essa dada situação. E quando há esse pensamento, quando há essa separação, e em nós é cultivada uma autoimagem, isso sustenta a presença da dor, a presença do sofrimento, e não haverá nenhuma possibilidade de nos livrarmos do sofrimento.

As pessoas perguntam: “Como me livrar do sofrimento? Como me livrar da ansiedade? Como lidar com pensamentos obsessivos, negativos, ruins, de tristeza?” Ao mesmo tempo que fazemos essas perguntas, não percebemos que há em nós uma imagem, uma autoimagem, que cultiva a autocompaixão, a autocomiseração.

Não haverá nenhuma possibilidade de nos libertarmos do sofrimento enquanto o pensamento não for observado. Está por detrás de tudo isso um movimento interno de pensamento, criando ideias, opiniões, avaliações, julgamentos, rejeições, lutando contra aquilo que ali se mostra, contra aquilo que ali se apresenta.

Então, contra o que ocorre ou contra o que ocorreu através do pensamento, o pensamento presente está sustentando a condição psicológica de autopiedade, de autocompaixão. Então o sofrimento está presente.

É possível termos um encontro direto, nesse instante, com a experiência? Contato direto com a experiência só se torna possível quando nós eliminamos duas coisas aqui. A primeira delas é o pensamento. A compreensão de que é o pensamento em você fazendo ideias, fazendo sugestões, é o pensamento em você pensando sobre aquilo. Então, a primeira coisa aqui é a visão do que o pensamento representa nesse instante.

O pensamento é só uma cortina entre aquilo que ali está acontecendo, ou aquilo que aconteceu, e você. Essa cortina está presente quando existe essa separação entre você e aquilo. E esse pensamento, que é essa cortina, está dando continuidade à rejeição, à resistência, à luta, contra as coisas como elas se mostram, contra os fatos como eles acontecem.

Então, a primeira coisa aqui é eliminarmos esse movimento interno, que é o movimento do pensamento. Temos que primeiro compreender o que é o pensamento. Há duas coisas. A primeira coisa aqui é o pensamento e a outra coisa aqui é o tempo.

O que é o pensamento? O pensamento é a ideia formada em nós, algo que vem do passado. O pensamento é uma lembrança, é uma memória, é uma recordação que estamos apegados, agarrados, e que queremos cultivar, que queremos sustentar. Isso faz parte da imagem que fazemos sobre o que a vida é ou sobre o que a vida deveria ser.

Esse pensamento tem a ver com a imagem sobre quem nós somos, sobre a importância que temos, o valor que trazemos, o que nós merecemos ou não merecemos. Assim, o pensamento é esse que sustenta essa autocomiseração, essa autopiedade. O pensamento é algo que vem do passado e que está sendo cultivado em nós, sustentado em nós como parte dessa imagem, que é a imagem do “eu”, desse “mim”, dessa “pessoa”.

Reparem que é nessa “pessoa”, nesse “mim”, no ego, que se sustenta o sofrimento. Perguntamos como nos livrar do sofrimento, mas nunca perguntamos o que é esse “eu” que está em sofrimento. A resposta para isso é exatamente essa que estamos dando.

Esse “eu” que está em sofrimento é uma autoimagem, uma imagem que você tem sobre quem você é, sobre o que você merece ou não merece, sobre o que a vida é ou deveria ser. Isso é o “eu”, esse “mim”. Então, a eliminação do pensamento é a eliminação do passado que sustenta essa imagem.

O outro elemento aqui é o elemento tempo, porque é nesse tempo que se sustenta a ideia da continuidade desse que está em sofrimento. Você diz: “Estou sofrendo, mas isso vai passar” ou “Estou sofrendo, mas preciso me livrar desse sofrimento”. Veja, “isso vai passar” está no futuro. “Preciso me livrar do sofrimento”: isso está no futuro. “Por que isso me aconteceu?” “Por que isso está acontecendo comigo?” Aqui nós temos o elemento do tempo.

Estamos tentando uma explicação de algo que fizemos no passado, e que o resultado disso, que fizemos no passado, está se mostrando agora, aqui, como um sofrimento nesse momento. Então nós temos esse elemento, que é o elemento tempo. É a ideia do passado. O pensamento constrói em cima dessa ideia do passado a culpa, o remorso, o arrependimento. Isso sustenta o sofrimento nesse instante. Ou a ideia do futuro: “isso vai passar” ou “amanhã estarei livre disso”.

Assim, não aprendemos a lidar com o sofrimento nesse instante, porque estamos cultivando o pensamento e cultivando o tempo. A eliminação do pensamento e a eliminação do tempo é a eliminação do sofrimento. Se você elimina o tempo e elimina o pensamento, você elimina essa autoimagem, fica diante do sofrimento.

Percebam a beleza disso. Há só o sofrimento, essa dor, esse golpe, esse sentir. Não tem “alguém” presente para, através do pensamento e do tempo, sustentar essa autoimagem.

Então, qual é a forma real de nos aproximarmos do sofrimento? Porque é só quando nos aproximamos do sofrimento, sem ideia, sem pensamento, sem julgamento, sem autojulgamento, sem resistência, sem autodefesa, sem luta, sem a tentativa de uma explicação, somente quando nos aproximamos do sofrimento como ele é – não como ele deveria ser ou que não poderia ser –, que podemos ficar livres dele.

Notem isso: “Não poderia estar acontecendo isso comigo” ou “Não podia ser assim”. Então, é o que “deveria ser” ou o que “não podia ser”. Quando nos livramos do pensamento, nos livramos de tudo isso. Então notem a relação íntima entre o pensamento e o tempo. “Não podia ter sido assim”, ou “poderia ter sido diferente”, ou “isso não poderia acontecer”: isso é pensamento, isso é tempo.

Então, pensamento e tempo dão formação a essa identidade, que é o “eu”, o ego, essa autoimagem, nesse movimento de autocompaixão, de autopiedade. O ser humano vive carregado de autopiedade, de autocompaixão. É em cima dessa autopiedade que estão presentes estados internos de angústia, de dor da solidão, de depressão, de medo, e tudo isso é sofrimento.

Notem: aquilo que sustenta todo esse sofrimento em nós é essa identidade. A identidade do “eu”, dessa “pessoa”, dessa autoimagem, e isso requer a presença do pensamento e a presença do tempo. Então, esse pensamento constrói o tempo – esse tempo psicológico –, e esse tempo psicológico sustenta o pensamento.

Como surgiu esse pensamento? É algo que vem de experiências passadas e, portanto, o pensamento também nasce do tempo. Então, o pensamento nasce do tempo e o pensamento constrói o tempo.

Então, o pensamento, que nasce do tempo, constrói a continuidade do tempo, e isso é a continuidade psicológica desse “mim”, desse “eu”, desse ego. Se temos o fim do pensamento, temos o fim do tempo, temos o fim do “eu”, do ego, e, naturalmente, temos o fim para o sofrimento.

Então, qual é a forma real de nos aproximarmos do sofrimento, de olharmos para o sofrimento? É sem o observador. Porque o observador é o pensamento, é o tempo, é a autoimagem, é o “eu”. O pensamento, o tempo, a autoimagem e o “eu” é o observador, que se separa da coisa observada. Então nós temos o observador e a coisa observada. A coisa observada é o sofrimento e o observador é o “eu”.

Podemos eliminar essa dualidade entre observador e coisa observada? A resposta para isso é: sim, quando tomamos ciência desse jogo, desse movimento que o pensamento “eu”, tempo, sustenta, que a autoimagem, que é pensamento e tempo, sustenta.

A forma de nos aproximarmos da experiência para eliminarmos o sofrimento de nossas vidas é: só há isso que está aqui. Um olhar livre do observador é só a ciência do sofrimento sem o sofredor. A ciência do sofrimento sem o sofredor é sem a autocompaixão, sem a autopiedade, é sem esse elemento que tem uma história de pensamento que ele cultiva.

Maio de 2024
Gravatá – PE, Brasil