Participante: Mestre, esses dias, eu estava andando pela praia e percebi que não havia em mim o mesmo desejo de estar ali que antes havia. E eu não fiz nada para que isso acontecesse; o desejo, simplesmente, não estava mais ali. Então, queria perguntar: qual a origem do desejo?
Mestre Gualberto: Eu vou dar para vocês uma nova aproximação desse assunto. Você não pode separar corpo e mente. O desejo está profundamente enraizado em você mesmo. Você não precisa e não pode ficar livre do desejo, sabendo que o desejo é em sua mente. Se você sabe que o desejo está em sua mente (já estudou muito sobre isso), não pode se livrar dele simplesmente conhecendo intelectualmente o seu mecanismo. A compreensão intelectual do mecanismo do desejo nunca é e jamais será suficiente para a libertação do desejo, porque você não separa corpo e mente.
A compreensão intelectual de qualquer assunto, mesmo no mundo da ciência, é totalmente insuficiente, visto que é necessária a experiência, o contato direto e real com a experiência, para que esse conhecimento seja efetivo. Quando você estuda geometria, química, medicina, ou qualquer outra área, precisa da experiência direta. Então, quando estuda geometria, o matemático precisa estar em contato com formas geométricas e áreas para saber o que ele estudou na teoria; o químico precisa estar em seu laboratório e, na prática, ver as suas fórmulas químicas e como as moléculas e os átomos se combinam; o médico precisa do contato direto com o corpo humano (os músculos, os ossos, etc.) e todos os seus sistemas que, na teoria, ele estuda na faculdade. Então, não é possível, mesmo no mundo do conhecimento material, viver sem a experimentação; tem que haver experiência e experimentação.
Assim, o conhecimento teórico sobre o assunto do “desejo”, ou seja, o mero conhecimento teórico, técnico, intelectual, desse assunto não é suficiente. Por isso, você pode passar muitos anos estudando falas sobre realização de Deus, lendo sobre isso, e nada disso irá funcionar. Nem mesmo o contato com uma prática ascética, espiritual, mística, irá funcionar. O que os Sábios conhecem acerca da libertação do desejo é que isso é algo que funciona somente através de um método ou de uma metodologia bastante específica; isso tem um modo de acontecer. Você precisa de uma mudança nesse “mecanismo”, e isso você não alcança intelectualmente. O entendimento verbal, intelectual, conceitual disso não dá certo, não irá provocar essa mudança.
Você precisa de uma mudança nesse “mecanismo”, nessa estrutura corpo-mente. Quando falamos “mente”, estamos falando em todo esse processo de sentimento, emoção, sensação, percepção, tudo isso faz parte desse “mecanismo”. Então, você precisa de uma mudança na mente e no corpo. Na mente (os sentimentos, as emoções, as percepções, os sentidos), o veículo é o corpo, e o processo é todo de cognição mental. O que nós chamamos de corpo é sensação e percepção, que ainda é parte da mente; ele está vivo em sensações, em experiências-sensações (frio, calor, duro, flácido, flexível) – isso é a experiência do corpo.
Portanto, quando falamos de realização de Deus, de autorrealização, estamos falando de algo que acontece nessa estrutura. Então, o intelecto, assim como a comparação, cognição, dedução, lógica, é somente uma parte pequena da função daquilo que, aqui, estamos chamando de “mente”. Então, precisa ficar claro que palavras não irão resolver, o conhecimento não irá resolver. Assim, essa mudança se faz necessária, e ela acontece nessa estrutura corpo-mente. Não é o desejo de ser livre que lhe dará liberdade, porque o desejo é, também, somente uma intenção volitiva, ainda do intelecto. Por isso que não se consegue a liberdade desejando-a; é necessário um trabalho de mudança nessa “máquina”, na estrutura das próprias células; é preciso uma mudança fisiológica, biológica, química, etc.
Com o propósito de trazer essa libertação, na história humana, já foram criados muitos sistemas, todos feitos com essa proposta – alguns trabalhando a parte física, como a Hatha Yoga, outros trabalhando a mente, como a Raja Yoga, outros trabalhando o lado dos sentimentos, emoções, como a Bhakti Yoga, etc. Tudo isso porque já se sabe que é necessária uma mudança completa e integral nesse corpo, nessa “máquina”. Então, mais uma vez, estamos diante da necessidade de um trabalho altamente científico e que funcione. Quando mencionamos Satsang, estamos falando de um contato com esse trabalho científico e funcional, não a palavra satsang, que hoje em dia está sendo muito usada no mundo ocidental, até muito abusada, também, porque qualquer encontro é assim denominado.
Você precisa de uma mudança química, biológica, neurofisiológica, completa nessa “máquina”, ou seja, onde se fizer necessário, o trabalho precisa acontecer. Então, é impossível a liberação, neste mundo, da ilusão da separação, da dualidade, pelo mero conhecimento intelectual disso. Você pode, verbalmente, dizer que está livre, falar de forma magistral e escrever livros sobre isso, mas estamos falando de algo vivencial, real na experiência. Isso só é possível nessa mudança. As próprias células cerebrais, assim como algumas células no corpo, precisam ter essa disposição de Consciência de não-separação, de não-dualidade.
Ninguém sabe o lugar da Consciência no corpo e, então, a ciência confunde impulsos elétricos cerebrais, a forma como esses impulsos são desenhados em um “mapa”, com Consciência – que não são estados que possam ser mapeados por impulsos elétricos cerebrais; o que pode ser mapeado são estados atrelados à biologia do corpo e a estados da mente. Então, estamos falando de outra coisa. Quando falamos de Consciência, falamos de algo presente que não pode ser descrito, desenhado ou mapeado, acompanhado por meros impulsos elétricos.
Veja que, quando falamos do fim do desejo, estamos falando de uma mudança profunda nessa estrutura. Você tem em seu corpo toda a memória animal de um macho desejando a fêmea e vice-versa; nas células do corpo está toda a memória de um peixe, de um pato, de um macaco, de um galo, etc.; está tudo aí. Portanto, o mecanismo do desejo não é intelectual, é biológico, é físico. Compreendem o que eu quero dizer?
Assim, quando você sente um desejo, é somente a repetição de algo presente na memória biológica. Então, não basta o conceito intelectual “não quero desejo”, porque esse é um outro desejo; por detrás desse “não quero desejo” tem, também, um outro processo que acontece completamente inconsciente aí, que é o medo. Veja o quanto isso é por demais complexo, para ser simplificado com uma simples frase, como: “não deseje”, ou “pare de desejar”, ou “pare de pensar”, ou “pare de sentir”. Está claro isso? Vejam que essa pergunta, que parece tão simples, tem uma resposta que exige muitas palavras e, mesmo assim, nenhuma garantia de compreensão disso, nem mesmo intelectual. Essa é a primeira parte da resposta, o que já ficou claro.
Agora na segunda parte, eu estou lhe explicando porque a coisa acontece, somente porque você está aqui, e você não sabe como aconteceu. O que de fato aconteceu, é que houve uma mudança, aconteceu um trabalho, nessa estrutura. Então, independentemente de você querer ou não ter desejo, isso caiu. Por exemplo, quando você via um carro bonito, não apenas apreciava o carro (“Que carro bonito”), pois acontecia automaticamente, rapidamente, numa velocidade incrível, um processo de comparação com o seu carro, ou com o fato de não ter nenhum carro, e aí você sentia: “era esse carro que eu queria”… “ah, se eu tivesse um carro assim”. Agora, você olha para o carro e vê o quanto é bonito, mas não há nenhuma aflição, nenhuma comparação, e você se pergunta: “Mas havia isso e agora não tem mais”?… “Que coisa sem sentido, desejar o que eu não tenho, sofrer por algo que eu não tenho”… então, você não entende.
O exemplo que vale para um carro vale para um homem bonito ou uma mulher bonita… Você olha (“Puxa, como ela é bonita”), mas não quer essa mulher para você (“Não tem nada a ver”); é bonita lá, pois não há desejo, não há comparação, porque, nessa “estrutura”, esse modelo, essa programação, já não está mais aí. Isso explica porque alguns nascem nesse mundo sem desejo, ou com poucas coisas ainda que lhe atraem nesse mundo. Um dia será provado, cientificamente, que todas as células carregam uma memória, que não é o DNA; é uma outra espécie de memória, de programação − é a programação do galo, do macaco, do peixe, bem como a programação da inveja, da comparação, do medo.
Aqui em Satsang, você está passando por um processo onde seus “arquivos estão sendo apagados”, onde os “aplicativos estão sendo desinstalados”. Esse processo é o despertar da Consciência no corpo, nessas células, em todo esse “mecanismo”. Isso, que já é conhecido há muitos e muitos anos, é chamado de despertar da Kundalini.
Para o homem ordinário, comum, basta a “vida” como a do galo, do macaco, do peixe; bastam esses aplicativos lá. Esse homem vive trinta, quarenta, cinquenta, setenta anos, e morre, levando para o túmulo com ele, também, a inveja, a ambição, o desejo, etc., ou seja, tudo o que conhecemos como padrões da “mente” egoica. Porém, para você que está dentro desse processo de “desinstalação de programas e aplicativos”, esse “mecanismo” precisa ficar livre do medo, o que causa a comparação, a base do desejo; desejo é medo, através da comparação. “Eu não tenho, quero ter”, “eu tenho, mas não é igual, quero ter”… Isso é medo, e a comparação e o desejo vêm dele.
Então, nesse processo, quando esse “aplicativo” é desinstalado da “máquina”, as células agora começam a trabalhar nessa dimensão nova e, agora, existe Consciência presente − você não é somente um animal, como um galo, um macaco, um peixe. Se você olhar para o reino animal, verá os pavões brigando, porque tem uma fêmea e algo os incomoda; eles brigam, um deles se mostra mais bonito e ficará com a pavoa. Tudo isso também está acontecendo com você, mas precisa ter um fim.
Você é a própria Consciência, a Liberdade, é Amor e Felicidade. Não há medo, aí, em sua Natureza Verdadeira, mas você está identificado com o corpo, com essa estrutura e nela, nas próprias células dessa estrutura, está a memória do pavão, do macaco, do galo, do peixe. Nesse trabalho, no contato com um campo de Presença, uma energia nova funciona como desinstalador dos “aplicativos”. Assim, essa energia entra no sistema, nesse “celular”, que é o seu corpo, e como um vírus ela se espalha e vai desinstalando os sistemas. Isso explica porque, para alguns “celulares” (o corpo), esse processo é tão traumático que dá alguns revertérios, algumas reações desagradáveis, como dor de cabeça, tontura, calor no corpo.
Então, o corpo está passando por um processo, exposto a essa energia nova – a energia do Guru (uma outra palavra para a presença da Graça), que é algo real, entrando nesse sistema, invadindo a estrutura, o corpo, e se espalhando por aí, provocando essas mudanças profundamente necessárias. Dessa forma, a presença do Guru funciona como um “catalisador” dessa energia. Catalisador é uma expressão usada em química, definida como uma substância capaz de alterar a velocidade de uma reação química, ou seja, aquilo que facilita a mudança de uma substância, através de um método científico. A Presença do Guru, a Presença da Graça, da Consciência na forma, reverbera aí, há uma ressonância, e essa ressonância provoca uma mudança desse “mecanismo”, na estrutura das próprias células, especialmente nas células cerebrais. Então, há uma “sintonização”, uma afinação, e todo o processo acontece.
Você não faz nada, e qualquer coisa que você faça, “quem estaria fazendo”? Você não tem nenhuma realidade fora dessa Consciência. Qualquer plano, método, sistema que você aplique, não vai dar certo, embora isso, também, esteja sendo tentado, como nas diversas técnicas de meditação que já estão no mundo. Vez por outra, aparece alguém que entra no mar, tem uma experiência “de uma luz que se abriu” e diz que “descobriu o caminho”; é somente uma experiência no mar, mas aí um novo sistema é criado e também introduzido nesse repertório. Nada disso dá certo; o que dá certo é a shakitpat, a Presença tocando você. Então, a Presença do Guru é esse elemento essencial para a constatação da Verdade de que você já tem toda a “Coisa”.
Por isso que as pessoas passam anos ouvindo falas de Krishnamurti, nas quais ele fala sobre o desejo, e você passa anos lendo Krishnamurti (ele dá toda essa explicação da mecânica do desejo), mas nada lhe aconteceu − você continua com desejo.
Então, o que nós estamos fazendo aqui? Estamos expostos a esse olhar, a esse toque físico, a essa palavra, a esse Silêncio, a esse sopro. O que estamos fazendo aqui? Estamos expostos a esse clima, a essa atmosfera. Há uma atmosfera à minha volta… nada pode chegar dentro dessa atmosfera, pode entrar nesse campo. Nada! Nenhum modelo de pensamento, nenhuma forma de crença. Assim, quando você está aqui, você está diante dessa Graça.