Vamos ver a mecânica do desejo.
Esse mecanismo (corpo/mente) carrega a memória da dor e do prazer, e isto está aí como uma impressão gravada na estrutura, no organismo. Essa impressão é muito valiosa para o experimentador. O experimentador nada mais é do que memória, mas é algo muito real em sua impressão nessa máquina, nesse mecanismo. Aparece o objeto de atração e a primeira coisa está no “ver”, mas o “ver” se transforma em “alguém” vendo, que é o experimentador voltando. Quando esse experimentador aparece, nesse “vendo”, com ele aparece o pensamento, a memória, a lembrança. Então, a memória e a lembrança criam um quadro: “como é bonito isto”, e o pensamento diz: “eu quero”.
Essa imagem que o pensamento cria começa a tomar vida e, na razão em que ela toma vida, dá maior estrutura ao experimentador. Claro, tudo isso é imaginário, mas muito real. Então, quando esse experimentador surge e diz “quero” e as imagens começam a se desenrolar, como um filme, temos o desejo. Isso vale para um homem bonito, uma mulher bonita, um carro, um sapato na vitrine, um vestido, um celular anunciado na TV ou em alguma mídia…
A imagem aparece e o pensamento salta sobre essa imagem, criando uma história, um filme, e, então, o experimentador surge, com esse fundo de memória, de prazer; ele se vê nesse prazer e aí surge o desejo. Então, esse desejo começa a queimar até que seja preenchido, mas, como a natureza do desejo é nunca se preencher, ele se modifica. Depois que adquire o objeto, ele fica tentando criar modalidades de satisfações com esse mesmo objeto, até que ele se desgasta. Então, o pensamento constrói uma outra imagem, uma outra imaginação, com um novo objeto. É o que acontece quando você quer mudar de namorado, quer experimentar outras formas de sexo, outros tipos de roupa, outro estilo de corte de cabelo, e assim vai. Isso não termina! A continuidade desse movimento é a “pessoa”, essa ego-identidade. Se você foi capturado nesse processo, não tem mais jeito. Aqui entra o que eu chamo de paciência, para encontrar o espaço de desligamento dessa mecânica da máquina.
Portanto, o trabalho agora é de quebra desse processo, de desligamento dessa mecânica, mas isso envolve muita dor e o experimentador, esse suposto “eu” envolvido nisso, não quer essa dor da quebra, do rompimento. Assim, você passa a vida toda capturado, de uma forma ou de outra, pelo objeto de desejo.
A questão é: é possível olhar e ficar atento a esse movimento quando ele surge? Você olha um rosto bonito, um corpo bonito, e no mesmo momento acontece algo aí, na estrutura corpo/mente, que é memória. Então, você diz: “Eu quero”. Vocês chamam isso de “química”, que é um nome que o pensamento criou para justificar padrões da mente egoica. Tem “química” para um e não tem para outro; tem “química” para um modelo, mas não tem para outro. Isso explica a bissexualidade, a homossexualidade, a heterossexualidade, porque esse “eu” gosta do que gosta. É só um condicionamento… Uma experiência lá na infância, uma experiência em algum momento, despertou o sentimento de satisfação, preenchimento, prazer, quando o experimentador saltou sobre isso e guardou aquilo como memória, e aí você diz: “Eu sou heterossexual”; “Eu sou bissexual”; “Eu sou homossexual”; “Eu gosto de sorvete; “Eu gosto de chocolate”; “Eu gosto desse estilo de carro”; “Eu gosto desse estilo de roupa”…
Tudo isso é condicionamento. Esse “eu” é essa estrutura corpo/mente, ego, “pessoa”, entidade, “mim”. Tudo isso é falso, não é Você, não é real. Não tem vida real nisso, mas uma vida fictícia, imaginária – uma vida “real” na imaginação – nunca fora do pensamento, do sentimento.
Então, a primeira lição que você tem que ter em Satsang é: “eu não sou o corpo”. Assim, você não tem como justificar histórias para si mesmo, para esse “mim mesmo”, como: “Quando eu era criança, eu passei por experiências, e hoje eu estou aqui nessa situação…”. Isso é fatal para a continuação da ideia “eu sou um miserável”, “eu sou alto ou baixo, santo ou pecador”. Então, você se identifica com o corpo e diz: “Eu não tive chance”; “Eu passei por isso”; Eu fui abusada”; “Eu fui…”. “Eu” quem? A mente pega isso para justificar a continuidade dessa ego-identidade nessa história “eu sou o corpo”.
Então, a primeira lição é: nada disso é você. Você nunca viveu isso. Eu sei que isso vai contra tudo que vocês aprenderam, estudaram na faculdade, ou leram sobre Freud. Tudo isso é muito “real” apenas para essa estrutura imaginária de uma ego-identidade presente nessa experiência “eu sou o corpo”. Então, desse ponto de vista, todas essas inúmeras teses que existem estão certas, só que isso não é verdade. Todas estão certas… Só que não! Enquanto se conservar a memória, a ego-identidade, o experimentador, tudo isso vai se justificar ou será passível de algum cuidado, de alguma ajuda, de algum tratamento, de alguma suposta cura. Mas não tem cura, não tem tratamento eficaz. Tem substituições através da hipnose e de outras técnicas de terapias, em que você substitui uma carta marcada por outra carta marcada, uma coisa por outra coisa.
A pergunta para você é: é possível ficar com os sentidos e com a beleza presente nessa alegria do som, da visão, do paladar? Repare que há alegria no paladar, no tato, nas cores, no som. Quando acontece a escolha dessa percepção sensorial, você não tem mais a alegria; tem o prazer ou a dor, o gostar e o não gostar. Então, você tem a confusão. Lembra? A confusão é a rainha, a mãe das escolhas. Reparem que quando você para a sua cabeça, por dois segundos, o cérebro “diz”: “Vire-se. Vá buscar algo”. Há uma alegria em cores, em formas. A não ser que você esteja voltado para dentro, se você parar a cabeça por um segundo, o cérebro já vai buscar uma outra coisa, porque os olhos querem ver coisas novas; o ouvido, da mesma forma, quer ouvir novos sons; a mão quer experimentar formas táteis. Essa é a mecânica do corpo na sua busca por sensações.
Tem um outro elemento que entra nessa experiência sensorial: é o experimentador, que quer transformar aquilo que vê, ou aquilo que escuta, num objeto de prazer. Para isso, o experimentador precisa da memória, criando, a partir dela, uma história. Assim, quando você escuta uma música, ela o leva para “aquele” lugar, que é um lugar imaginário de prazer, onde você é “alguém” sentindo, onde há essa contração de “ser alguém”, uma coisa assim que, se vacilar, pode levar até ao orgasmo. Isso porque é muito sensorial, é muito físico (cria arrepios no corpo, as lágrimas rolam…), é uma história individual, pessoal, particular, centrada nessa “pessoa”. Não tem nada a ver com a realidade do que É, mas, sim, com o imaginário mundo de “ser alguém”.
O sentido do “eu” faz isso usando o quê? Os sentidos. Uma coisa tão bonita no corpo, uma mecânica no corpo tão inocente, mas agora a serviço de uma ego-identidade, a serviço do sofrimento. Tudo isso você faz porque, no fundo, você quer se sentir vivo e isso significa estar nessa contração de “alguém” vivendo uma realidade sua, única, pessoal. Como está distanciado do que É, isso representa sofrimento.
Acompanharam-me até aqui? É possível ficar apenas com os sentidos, sem aquilo que o pensamento pode criar sobre a experiência sensorial? É possível?